quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Violoncelista Singular


Em agosto desse ano fui participar do Festival "Heart of Europe" na Alemanha representando o Brasil juntamente com um grupo coral, o Coretfal. Estávamos bastantes concentrados, focados no nosso trabalho e querendo nos superar para mostrar o melhor da nossa cultura para os "gringos". Nosso grupo sempre trocava mensagens de apoio entre os participantes, foi então quando recebemos um texto sobre a história verídica de um violoncelista, sei que alguns de vocês podem conhecer essa história, porém eu não poderia deixar de compartilhar, pois a achei tocante e justamente por ser especial não poderia ficar de fora do nosso Blog.

Leiam e se emocionem com a história do "Violoncelista de Saravejo".

SINGULARIDADE

"Vibramos com os feitos de nossos heróis, esquecendo que

também somos extraordinários para alguém." -

Helen Hayes.

É comum querermos ser exatamente como nossos heróis. Isso é bom se não nos fizer perder de vista a riqueza de experiências, talentos e bondade que se somam para fazer de cada um de nós uma pessoa única. Ao procurar comportamentos que dêem mais significado a nossas vidas, é importante não querer ser como os outros, mas descobrir quais são os nossos talentos especiais que podemos compartilhar com os outros.

Esse foi o caso de Vedran Smailovic, que se tornou conhecido como o violoncelista de Sarajevo. Dentro das seguras paredes de sua casa, Vedran podia sentir a devastação e os tormentos da guerra. Da janela, via pessoas vagueando desesperadas. Em tais condições, tinha todos os motivos para permanecer escondido dentro de casa. Mas, quando viu o apelo da vida, respondeu ao chamado corajosamente, exercendo o que fazia melhor.

O VIOLONCELISTA DE SARAJEVO

Por: Paul Sullivan

Como pianista, eu fora combinado a me apresentar com o violoncelista Eugen Friesen no Festival Internacional de Violoncelo em Manchester, na Inglaterra. A cada dois anos, os maiores violoncelistas do mundo e pessoas devotadas a esse despretensioso instrumento – fabricantes de arcos, colecionadores, historiadores – se encontram para uma semana de seminários, aulas magnas, congressos, recitais e festas. A cada noite, cerca de 600 participantes se reuniam para um concerto.

A apresentação da noite de abertura no Royal Northern College of Music consistia de composições criadas exclusivamente para violoncelo. No palco da magnífica sala de concertos havia apenas uma única cadeira. A atmosfera estava intensamente carregada de expectativa e concentração.

O mundialmente conhecido violoncelista Yo-Yo Ma iria se apresentar naquela noite de abril de 1994, e por trás da composição musical que ele iria tocar havia uma comovente história.

Em 27 de maio de 1942, numa Sarajevo devastada pela guerra, uma das poucas padarias que ainda tinham suprimento de farinha estava distribuindo pão para pessoas famintas e desabrigadas pela guerra. Às quatro da tarde, uma longa fila se estendia pela rua. De repente, um morteiro caiu no meio da fila, matando 22 pessoas e esparramando carne, sangue, ossos e pedras.

Não muito distante vivia um músico de 35 anos chamado Vedran Smailovic. Antes da guerra, ele tinha sido violoncelista na Ópera de Sarajevo e desenvolvera uma brilhante carreira para a qual ansiava retornar. Refugiado em seu apartamento, presenciou a carnificina e o massacre e, angustiado, resolveu doar o que tinha de melhor: seu talento para tocar música. Música pública, música ousada, música em um campo de batalha.

Nos 22 dias seguintes, Às quatro da tarde, Smailovic vestia seu fraque, pegava o violoncelo, deixava o apartamento e andava em meio ao bombardeio que ainda ocorria a seu redor. Após colocar uma cadeira de plástico ao lado da cratera que a bomba tinha aberto, ele tocava, em memória dos mortos, o Adágio de Albinoni em sol menor, uma das mais tristes e tocantes peças do repertório clássico. Tocava para as ruas desertas, para os veículos destruídos, para os prédios em chamas e para as aterrorizadas pessoas que se escondiam nos porões enquanto bombas caíam e balas sibilavam. Com paredes desmoronando em volta dele, fazia a sua inimaginável e corajosa defesa da dignidade humana, das pessoas perdidas na guerra, da civilização, da compaixão e da paz. Embora as bombas continuassem a cair, ele nunca se feriu.

Quando os jornais publicaram a história desse homem extraordinário, um compositor inglês, David Wilde, ficou tão comovido que também decidiu escrever uma composição para ser tocada exclusivamente por violoncelos. Em O violoncelista de Sarajevo, colocou seus sentimentos de amor e fraternidade por Vedran Smailovic.

Era O violoncelista de Sarajevo que Yo-Yo Ma iria tocar aquela noite. Ma entrou no palco, curvou-se para a platéia, sentou-se na cadeira e começou a tocar. A música invadiu a sala silenciosa e se espalhou, criando um universo sombrio, deserto e tocante. Lentamente, avançou para um agonizante, agudo e lancinante furor que envolveu a todos, antes de esmorecer finalmente em um estertor mortal surda para, finalmente, silenciar.

Depois de terminar, MA permaneceu curvado sobre seu violoncelo, o arco apoiado nas cordas. Ninguém se mexeu ou fez qualquer ruído na sala por um longo tempo. Era como se tivéssemos acabado de reviver aquele horrível massacre.

Finalmente, Ma olhou para a platéia e estendeu a mão, chamando uma pessoa para ir ao palco. Um indescritível choque elétrico nos atingiu quando percebemos quem era: Vedran Smailovic, o violoncelista de Sarajevo!

Smailovic levantou-se de sua cadeira e caminhou pelo corredor enquanto Ma descia do palco para recebê-lo. Quando os dois se abraçaram calorosamente, a platéia estourou em um desordenado delírio emocional – batendo palmas, gritando e ovacionando.

Em meio a tudo isso, aqueles dois homens se abraçavam e choravam sem qualquer vergonha. Yo-Yo Ma, um delicado e elegante príncipe da música clássica, impecável na aparência e no desempenho, e Vedran Smailovic, vestindo um manchado casaco de couro. Seu cabelo longo e rebelde e o enorme bigode emolduravam um rosto envelhecido encharcado de lágrimas e enrugado de dor.

Nós na platéia nos sentimos despidos de qualquer artifício, reduzidos à nossa mais total e profunda humanidade, ao encontrar esse homem que com seu violoncelo desafiou bombas, morte e ruína.

De volta ao Maine, uma semana depois, sentei-me uma noite ao piano para tocar para os idosos de um asilo local. Não pude deixar de comparar esse concerto com o esplendor que tinha testemunhado no festival. E então me vi surpreendido pelas profundas semelhanças. Com sua música, o violoncelista de Sarajevo tinha desafiado a morte e o desespero e celebrado o amor e a vida. E ali estávamos nós, um coro de vozes dissonantes acompanhadas por um piano velho fazendo a mesma coisa. Não havia bombas nem balas, mas havia dor real – perda de visão, uma solidão esmagadora, todas as cicatrizes acumuladas durante a vida – e apenas recordações felizes para confortá-los. Mesmo assim, cantávamos e aplaudíamos.

Foi então que percebi que a música é um presente que pode ser igualmente compartilhado. Seja ela criada por nós ou simplesmente ouvida, é uma dádiva que tem o dom de nos confortar, inspirar e unir quando mais precisamos – e menos esperamos – dela.

O mundo atual está coberto por campos de batalha – alguns reais, outros sociais, emocionais ou espirituais. Certamente, todos conhecemos pessoas que passam por sofrimento ou desespero com a perda de seus bens, com doenças ou solidão. Quando Vedran Smailovic presenciou a necessidade extrema dos que se encontravam ao lado de fora de sua janela, ele deixou a segurança de sua casa e resolveu doar o que tinha de melhor. Para ele, isso significava tocar música. Todos nós temos coisas que fazemos melhor, que são nosso maior talento, por mais insignificantes que possam parecer. Algumas pessoas têm mais capacidade para ouvir; outras, para entreter ou espelhar alegria; outras, ainda para aconselhar. Sejam quais forem os nossos talentos ou especialidade, nossas vidas sempre se enriquecerão de significado quando compartilharmos o que temos de melhor – nossas singularidades – com os outros.

*Fotografia acima de Vedran Smailovic tocando no prédio destruído da Biblioteca Nacional de Saravejo em 1992. By Mikhail Evstafiev.